Quarto de RJ King

Abri os olhos com uma careta, acho que tinha dormido demais, só me costumava doer a cabeça depois de acordar quando isso acontecia. Olhei para as horas reparando que já estávamos num novo dia, ainda que fosse apenas oito horas da manhã e fui até à casa de banho engolir uns comprimidos e lavar a cara e os dentes. Ia deixar que Sally dormisse, mas enquanto isso ia pedir alguma coisa para comermos. Não sabia o que é que lhe havia de dizer para a tentar fazer mudar de ideias, e por enquanto achava melhor continuar calado. Preferia falar com o médico dela primeiro. Já tinha feito asneira que chegasse, ontem. Agarrei na ervinha que tinha comprado há uns dias, com ela, e peguei num filtro, entretendo-me enquanto ela não dava sinais de vida.

Não era que tivesse tido o sono mais descansado de sempre, porque não tinha, mas ainda assim, era preferível dormir do que estar acordada. Porém, não podia ficar adormecida para sempre, e algo me dizia que já tinha dormido mais do que era suposto, por isso, assim que os meus sentidos foram despertando, eu fui também abrindo os olhos devagarinho. Olhei para o lado, vendo King já acordado ao meu lado e acabei por sentar-me, tal como ele, passando as mãos pela cara. A minha cabeça pesava toneladas, era cada vez mais difícil mantê-la levantada.
- Bom dia.- murmurei apenas, para não ser mal educada.

Desviei o olhar da chama do isqueiro para o corpo de Sally que começou a acordar e levantei-me para ir buscar os tabuleiros que estavam à porta - bom dia - disse colocando o cigarro ao lado de um prato. - Podes dizer que não a muitas coisas, mas não me vais dizer que não ao pequeno almoço que pedi de propósito para nós e ao maravilhoso cigarro que fiz só para ti - fiz o meu melhor sorriso. Eu não sabia se ela estava chateada comigo ou qualquer coisa parecida, mas queria que aquilo compensasse a tarde de ontem, além disso, ela precisava de se acalmar, o que eu lhe estava a dar ia deixa-la bastante calma.

Contrariamente ao que eu esperava que acontecesse, a noite de sono não foi o suficiente para me esquecer do que estava a acontecer. Aliás, eu não conseguia simplesmente esquecê-lo, era impossível esquecer que se estava a morrer, por mais noites de sono que se tivessem. Soltei um longo suspiro, sentindo um nó formar-se na minha garganta, como sempre acontecia quando eu tinha vontade de chorar, mas não o pude falar, visto que King começou a falar para mim. Desviei o olhar na sua direcção, vendo-o ir buscar comida e abanei logo a cabeça, ainda ele não tinha acabado de falar.
- Não tenho fome.- murmurei, baixando o olhar para o cigarro.- mas aceito o cigarro.- disse. Se fosse noutra altura, teria ficado cética em relação aquilo, mas agora, eu ia morrer de qualquer das formas, não era? Ao menos ia aproveitar enquanto podia.

Sentei-me na cama e a única razão por não estar a fumar, foi por já tê-lo feito. Não era muito saudável a estas horas da manhã, mas a vontade de comer era pouco e o nível de tensão era máximo. - Não te preocupes com a comida, vais ter fome - garanti assentindo positivamente com a cabeça, o que eu mais tinha depois disto era fome. Estiquei-me até a uma taça de fruta, começando a tirar de lá pêssego que estava cortado às fatias e comecei a come-lo, dando-lhe um isqueiro.

Encolhi ligeiramente os ombros, não ligando muito ao que ele dizia e limitei-me a agarrar no isqueiro que ele me estendia, colocando o cigarro na boca para depois o acender. Nunca tinha fumado uma coisa daquelas, mas talvez fosse do que eu estava a precisar para esquecer o facto de o meu corpo se degradar a cada dia. Dei um primeiro bafo e devo tê-lo feito com demasiada força porque assim que o fumo me foi parar à garganta, eu desatei a tossir.
- Merda.- tossiquei, sentindo as lágrimas surgirem-me nos olhos, por me ter engasgado, mas logo me endireitei, respirando fundo.- eu estou bem.- falei para King, esticando-me até beber um bocadinho de sumo e depois voltei a tentar, até finalmente conseguir fumar aquilo como deve de ser.

Ao contrário do que o meu corpo estava a mandar fazer, que era ajuda-la quando se engasgou, a minha mente só soube rir. Não era por estar todo lixado da cabeça, era mesmo porque ela precisava de distração e se eu continuasse a querer ajuda-la e a trata-la como uma inválida só ia piorar as coisas. Ao acabar de comer a minha parte da comida fui sentar-me a seu lado na cama, esticando as pernas para a frente e encostando as costas às almofadas de um modo confortável e relaxado. - devíamos fazer bungee jumping. Deve ser mais giro, porque ficas pendurado.

Fiz uma pequena careta ao ouvir as gargalhadas de King, depois de eu me ter engasgado, mas nem sequer fiquei chateada. Ainda só tinha dado alguns bafos, mas acho que, por nunca ter fumado daquilo, o meu corpo ainda era demasiado sensível, ao ponto de já começar a sentir o efeito. Dei um outro bafo, encostando a cabeça à sua cama e fiquei apenas a saborear o gosto que aquilo deixava na minha boca, ao mesmo tempo que sentia a minha cabeça ficar mais leve, a cada minuto que passava. Abri depois os olhos, quando a voz de King se fez ouvir perto de mim e encolhi os ombros ao que disse.
- Sim, é capaz ser mais divertido morrer no ar do que morrer com um cancro.- disse, acabando por me rir de seguida.- acho que devíamos mesmo experimentar.

Olhei para Sally com uma expressão séria, devido a ter dito que devia ser mais divertido morrer no ar que de cancro mas acabei por me rir com ela - e mais fácil também - acabei por acrescentei, passando as mãos pelo gorro que agora usava sempre. Fiquei durante um bocado em silêncio, virando a minha cabeça para o lado dela, que acabou por embater no ombro dela. - isto é tão fixe - comentei - se estar doente quer dizer que posso estar sempre assim quero estar sempre doente - sim, agora já começava a dizer porcaria.

Desviei o olhar para King, quando o ouvi rir-se também, e senti-me ficar ligeiramente surpreendida por não me ter dado na cabeça. Agora sim, começava mesmo a gostar dos efeitos daquela coisa. Dei o último bafo, expelindo depois o fumo e esmaguei a ponta do cigarro na borda do prato, ajeitando depois as almofadas atrás das costas, numa tentativa de ficar mais confortável. Olhei para o lado, quando senti a cabeça de King pousar no meu ombro, e acabei por deitar a minha também, mas sobre a sua.
- Será que também vendem destas coisas no céu? - perguntei, fazendo uma expressão intrigada.- é porque, se as dores continuarem lá, eu vou querer fumar disto.- assenti muito com a cabeça, abraçando-me depois ao seu corpo.- sinto a minha cabeça tão leve, parece que estou a voaaar.

Fiz uma careta quando ela falou no céu e olhei-a assim que se abraçou a mim. Coloquei um braço por baixo da sua cabeça de modo a fazer de almofada, e fiquei ligeiramente, também, abraçado a ela - Tu não vais para o céu - disse-lhe abanando a cabeça, mas logo mudei a direção, passando a assentir positivamente - eu sei - não era como estivesse dentro da mente dela, mas acontecia-me praticamente o mesmo. O meu corpo estava tão leve e era tão bom. - A sério que não tens fome? És um caso raro.

- Não vou para o céu? - perguntei, de sobrancelhas juntas, assim que o ouvi dizer que não.- porquê? Eu fui boazinha.- assenti.- eu mereço ir para o céu.- queixei-me, fazendo também um beicinho, e acabei por me chegar mais para junto dele quando senti o seu braço debaixo da minha cabeça. Coloquei um em redor do seu corpo e só o voltei a olhar quando o ouvi perguntar-me se não tinha fome.- por enquanto não.- respondi, encolhendo os ombros.- estou ocupada a voar.- ri-me baixinho e quando o ouvi completar que eu era um caso raro, acabei mesmo por sorrir mais marota.- mas que bela forma de me elogiares.- gargalhei.- deitando a cabeça no seu peito.- muito original Rayray.

-Não - voltei a repetir com um sorriso e fechei os olhos, apesar de não ter sono. - Vais ficar comigo, e eu vou ficar aqui - por esta altura já não estava a controlar o que dizia, mas se calhar até era o melhor. Passei os dedos pelo cabelo de Sally, sorrindo enquanto olhava para eles - vais ter. Vais ter muita - ri-me com o que disse de seguida - é verdade. Não são todas as pessoas que são o meu anjo - disse afagando a sua cabeça assim que a senti no meu peito.

Ainda que tudo isto me deixasse mais descontraída, os meus pensamentos continuavam iguais, apesar de mais lentos e confusos. Eu continuava a saber que ia morrer. Por isso mesmo, quando o ouvi dizer-me que eu não ia para o céu porque ia ficar ali com ele, levantei a cabeça para o olhar, espetando-lhe um dedo no peito enquanto falava.
- Tu não vais morrer.- abanei muito a cabeça.- tu vais ficar bom porque eu disse que ias ficar bom.- encolhi os ombros, não sabendo muito bem o que estava a dizer, e só não continuei porque assim que o meu olhar parou na sandes que ainda estava em cima do tabuleiro, eu endireitei-me, esticando-me até ela.- acho que percebo onde queres chegar.- ri-me, deixando a sandes em metade só com uma dentada, e assim que a terminei, deixei-me cair de novo sobre o peito de King, pousando uma perna minha sobre as suas.- espero que não tenhas mais nenhum.- fiz cara de má.- porque mais ninguém tem uns olhos como os meus.- sorri convencida.- e eu não quero que tenhas mais anjos nenhuns.

Passei uma mão pelos olhos, esfregando-os e voltei a olha-la ouvindo-a dizer-me que não ia morrer. Sorri esticando um braço para cima da sua cintura e encolhi os ombros - isso é porque tu também não - semicerrei os olhos mas não disse mais nada, vendo-a apenas esticar-se para a comida. Pelo menos aquilo tinha feito efeito. Estiquei-me até um morango comendo-o também e ri-me ao vê-la devorar a sandes. Ajeitei o meu gorro, desviando o olhar para ela e abanei negativamente a cabeça - não, eu não tenho mais anjos nenhuns, és a única. - disse encostando a cabeça ao seu ombro por alguns momentos.

Assim que o ouvi dizer-me que eu também não ia morrer, não lhe respondi. Não que tivesse mudado de opinião, porque não tinha, mas naquele momento a minha mente estava demasiado confusa para eu conseguir sequer formular uma frase com sentido. Além do mais, estava a tentar aproveitar aquele momento para parar de pensar na morte. Ia ter muito tempo para isso. Baixei o olhar para o seu braço em redor da minha cintura, assim que ma abraçou, e voltei depois a olhar os seus olhos, sorrindo enquanto me aconchegava contra o seu corpo.
- Eu gosto de ti Rayray.- assenti, enfiando a cabeça no seu pescoço, sorrindo assim que disse que eu era o seu único anjo.- cheiras bem e és confortável.- ri-me, abraçando-me a ele.- eu gosto mesmo muiiiiiiito de ti.

Sorri quando ela se aconchegou contra o meu corpo e abracei-a com força, olhando os seus olhos assim que disse que gostava de mim. - Eu também, anjo - sorri-lhe tocando-lhe numa bochecha e levantei uma sobrancelha assentindo com um sorriso maroto - eu sou bastante confortável. - ri-me e olhei-a mais atentamente, tirando-lhe o cabelo da frente da cara - Eu penso muitas vezes em beijar-te - murmurei.

Um sorriso enorme apareceu no meu rosto, assim que ouvi King dizer-me que também gostava de mim, e só não me cheguei mais para ele porque não dava. Estiquei-me até lhe dar um beijinho no queixo, que era o único sítio onde conseguia chegar, e ri-me com a cara que ele fez depois, coisa que não durou muito, porque quando o ouvi dizer que pensava muitas vezes em beijar-me, levantei o olhar para o seu.
- E porque é que não me beijas? - perguntei baixinho, levantando ligeiramente as sobrancelhas.- eu não beijo bem?

Desviei o olhar para os seus olhos quando ela me olhou e sorri levemente ao ouvi-la perguntar porque é que não a beijava - não - ri-me - beijas bastante bem - toquei-lhe na bochecha - só não quero fazer uma coisa que tu não queiras e que te possas vir a arrepender - murmurei. Sim, porque apesar de eu ser bastante positivo eu também estava doente e podia não correr bem para mim, tal como tinha corrido mal para a minha mãe, e ela podia-se arrepender de se ter envolvido comigo e... Apenas revirei os olhos aos meus pensamentos e baixei-me até lhe beijar os lábios.